Inspeção veicular e poder de polícia

Extraído de Notícias Jurídicas

Inspeção veicular e poder de polícia

Foi ajuizada neste mês uma ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 4551) questionando a lei que, no Estado do Rio Grande do Norte, disciplina o sistema de inspeção veicular - a Lei nº 9.270, de 2009. Esse diploma definiu os critérios de inspeção e estabeleceu que tais atividades poderão ser executadas por um concessionário, a ser selecionado em processo de licitação e remunerado por meio de tarifas. Aliás, sob esses aspectos, a lei potiguar é semelhante a outras leis brasileiras - a Lei nº 14.717, de 2008, do município de São Paulo, e a Lei nº 3.564, de 2010, do Estado do Amazonas.

O fundamento da ação retoma discussão antiga, valendo-se de conceitos igualmente remotos. Com lastro em portarias do Conama, órgão com funções consultivas e deliberativas, vinculado ao Ministério do Meio Ambiente, a ADI pretende qualificar de "poder de polícia administrativa" as atividades executórias da inspeção. Na medida em que se trataria de polícia administrativa, a sua execução não poderia ser remunerada por meio de tarifa, mas sim de taxa. Tributo que é, a taxa submete-se ao sistema constitucional brasileiro (artigos 145, inciso II, e 150, inciso I, da Constituição). Logo, a ação sustenta que a lei estadual seria inconstitucional ao estabelecer a cobrança por tarifa. Esse é o tópico central, que implicitamente traz consigo outro assunto de igual relevância: a possibilidade (ou não) de delegação do poder de polícia administrativa a pessoas privadas.

O enfrentamento dos temas exige a respectiva contextualização. Afinal, está-se ou não diante de poder de polícia administrativa? A premissa é a de que não se pode congelar os conceitos no tempo, a fim de se aplicar hoje a construção dogmática do século XIX - como se dá no caso do poder de polícia. Mais do que isso, é importante a consciência do que efetivamente se passa no mundo dos fatos, para não se correr o risco de confundir tais conceitos pretéritos com o que ocorre na realidade contemporânea. Só assim será possível concluir pela existência (ou não) de polícia administrativa e aplicação (ou não) do regime tributário.

As tarefas atribuídas ao Estado não mais se encaixam nos antigos conceitos binários

A expressão "poder de polícia administrativa" reporta-se ao momento histórico do Estado que realizava apenas um par de atividades: serviço público (as comodidades oferecidas aos particulares, como iluminação urbana e transportes públicos) e polícia administrativa (as restrições às liberdades das pessoas e respectiva fiscalização, como os limites às construções nas propriedades privadas ou ao porte de armas). Como os serviços públicos trazem benefícios, podem ser concedidos às pessoas privadas e remunerados por meio de tarifas (preços públicos).

Já a polícia administrativa tem fronteiras mais rígidas: aqui, se está diante de restrições à natural liberdade das pessoas - que, por nascerem livres e iguais, só poderiam ter esses atributos limitados por força de lei. Mais ainda: a polícia é típica atividade de Estado, como soberano detentor da força institucionalizada. As escolhas eram poucas, a vida mais simples e as soluções bem fáceis. Esse direito administrativo, que refletia a simplicidade das tarefas do Estado liberal, começou a se transformar no início do século XX.

Hoje, os temas são muito mais complexos. As tarefas atribuídas ao Estado são de tamanha monta e variedade que não mais se encaixam nos antigos conceitos binários (ou serviço público ou poder de polícia). A evolução tecnológica multiplicou as demandas e gerou a fragmentação material das tarefas públicas, dividindo-as em momentos autônomos. Isso autorizou - senão exigiu - a respectiva atribuição compartilhada de cada uma dessas fases. Por isso que não é necessário que o Estado execute todas as tarefas (em especial as meras rotinas técnicas). Em decorrência, o poder de polícia administrativa tende a se concentrar em um núcleo duro, que efetivamente represente a intervenção pública na vida privada. Ao seu tempo, as atividades anteriores - ou mesmo posteriores - a tal núcleo podem ter sua execução transferida a pessoas privadas (concessões, permissões, autorizações e terceirizações).

Logo, dizer que a fase técnica da inspeção veicular é polícia administrativa equivale a defender que o controle de ingresso nos prédios públicos e a pesagem de veículos em rodovias concedidas é igualmente poder de polícia, cuja execução não poderia ser contratualmente transferida a pessoas privadas (e o que se dizer do raio-x de malas e pessoas nos aeroportos?). A execução dessas novas formalidades de fiscalização da vida privada não se submete à racionalidade pretérita. Aqui não se está a falar de delegação de poderes públicos, mas de atividades formais cujos limites e modo de implementação são anteriormente definidos pela administração pública e apenas executadas por pessoas que detenham o domínio da técnica. Não se trata de restrições às liberdades. O tema é outro, pois diz respeito a atividades acessórias, que apenas permitem o futuro e eventual exercício do poder de polícia.

Egon Bockmann Moreira

Egon Bockmann Moreira é advogado, doutor em direito e professor da Faculdade de Direito da UFPR

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Fonte: Valor Econômico


 

 

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